23.12.05


CAMPOS DE CARVALHO E AQUELES OUTROS
Observei a mulher em pé presa, de um lado, pelo corrimão do ônibus e de outro pela revista aberta tão próxima aos olhos. Quinze quilômetros e aquela leitora sem tomar conhecimento do que se passava no interior do transporte coletivo, muito menos do que se passava lá fora. Estava mais ao exterior: nas páginas da revista semanal. Pensei no quanto ela poderia estar lendo de sociologia, psicologia, antropologia e tantas ciências pousando os olhos passageiro por passageiro. Pensava assim para amenizar a inveja que sentia dela. Nunca fui e nem serei capaz de ler em pé dentro de um ônibus.

Observei aquele outro que entra no ônibus e abre o livro, cada vez um menor que o anterior. Levanta a publicação até a altura dos olhos e parece que fica sempre na mesma página. Nunca percebi que troque de página.


Aquela outra que abre a pasta tira todo o seu escritório com arquivos, biblioteca e escreve, corrige, reescreve com o ônibus andando pelo asfalto mal cuidado. Pela rua não planejada cheia de curvas.


Acompanhei mais um que entra sem tirar os olhos de cima do livro aberto. Paga a passagem na entrada ou na saída sem olhar o dinheiro na mão. Mas sabe esperar o troco (também sem olha-lo) quando tem. Nada lhe chama a atenção do lado de fora da janela. Nem o sol, nem a lua, nem o grito, nem o sorriso, nem o choro. Pelo lado de dentro vi o sol bater forte nos seus braços sem ele sentir a dor do calor.
E aquele outro (entre tantos mais) que não interrompe a leitura nem mesmo quando desce do ônibus com a chuva a surpreender qualquer ser mortal e sai correndo, mas mesmo assim com o livro aberto lendo atentamente a tal ponto que se pode acompanhar o movimento contínuo da sua cabeça, na leitura dinâmica, num vai-e-vem da esquerda para a direita da página.


Há mais um que não posso esquecê-lo, apesar de às vezes desaparecer. Sempre de bermuda, tênis e meias a caminhar, parece que pela mesma rua, de cima para baixo, de baixo para cima, com um livro aberto. Lê mesmo quando está atravessando a rua. Com tanta sorte nunca o encontrei esperando que os carros passem para atravessar. Não sei se espera lendo e só pela audição fica sabendo que o caminho foi liberado.


Por que eles podem e eu não? Tentei com livros de poesia, cuja impressão é estreita e meus olhos não precisam fazer longas distâncias. Tentei com livros de bolso. Tentei dobrando o jornal. Sempre a minha coluna cervical começa a doer. O desconforto vai crescendo e redunda num grande mal estar. Sou obrigado a desistir.


Naquela tarde de pleno frio, agasalhado por uma roupa pesada que deixava meus braços fortes, levei comigo o recém chegado (depois de longa espera pela encomenda) Quem tem medo de Campos de Carvalho?
A minha descoberta acontecera pela entrevista do autor: Juva Batella. Sabia que teria que esperar sentado algum tempo para fazer o meu trabalho. Aproveitaria para ler com água na boca e coração na mão a obra sobre o ignorado e talentoso autor de A lua que vem da Ásia, Vaca de nariz sutil, Chuva imóvel, Púcaro búlgaro e o mais desconhecido Tribo.


No caminho, mesmo com o movimento para um lado e para outro do ônibus, abri e tentei ler o livro de capa preta e pequenas caricaturas. Mal consegui observar as ilustrações do próprio Campos de Carvalho. A cervical gritou "alto lá" não tens o privilégio de ler aqui dentro do ônibus. O máximo que podes fazer é ler o interior do transporte, o que passa apressado pelo ângulo da janela. Ou então viajas para dentro. Obedeci.


Para surpresa minha não tive que esperar para realizar o trabalho. Coloquei a dupla Batella e Carvalho sobre uma mesa, bem à vista dos meus olhos. E mãos à obra. Dali saí com o livro sob o braço forte e andei daqui para ali, falando com este e aquele. Me certificando sempre que aqueles dois estavam comigo.


Quando entrei no ônibus dei-me conta de que eles haviam ficado para atrás. Não tive pudor de comunicar a todos os outros passageiros da perda do livro. Pedi para o motorista parar, paguei a passagem e desci poucos metros além do ponto. Tinha certeza que Juva com o Carvalho me esperavam sobre a relva de onde entrei no ônibus. Ledo engano. Fiz todo o caminho desde sempre quando peguei de volta o livro após realizar a minha tarefa. Perguntava a um e a outro se não haviam visto largá-lo novamente. Aqui não. Não percebi que estavas com um livro sob o braço. Tinha certeza que fui até a rua sem medo de Campos de Carvalho. Quando percebi que a minha procura não encontraria solução , dei-me por vencido. Fui embora com a certeza de que a roupa de inverno não fora tão forte para segurar o livro. Em algum momento sem mais cuidado deixei-o cair. Ainda tenho a impressão que fora na relva.


De volta não pensei duas vezes em passar pela livraria e saber se havia mais um ou dois exemplares com a minha encomenda. O controle eletrônico da loja dizia que o exemplar que chegara com o meu ainda estava lá. O funcionário e eu fomos de estante em estante. Às vezes o livro está registrado como ainda não vendido, mas já foi embora... O funcionário chama um colega que segundo ele foi quem guardara aquela chegada de encomendas. Lá de cima vem o outro e sem medo de Campos de Carvalho vai com o dedo apontado para Juva Batella numa estante.


Segurando a obra com as duas mãos, decidi deixar a companhia dos livros sempre em casa.

À LIVRARIA DO GLOBO, COM CARINHO
"Naveguei por oceanos e bibliotecas." (Herman Melville, Moby Dick)
Os verões sempre foram tórridos em Santa Maria. As férias escolares começaram antes de novembro terminar. Sabia que não haveria ônibus, avião, carona, trem.

Consegui emprestado os volumes de O Tempo e O Vento. Fiz da poltrona de braços largos um navio, sempre pronto para zarpar do cais da sala de visitas.


Naqueles dias quentes, com a cabeça escorada num dos braços da poltrona e com as pernas sobre o outro: viajava. Continentes, arquipélagos e retratos.

Quando cansava, olhava o outro mundo pelas escotilhas imaginadas nas duas janelas, que ladeavam a porta para a rua.

A viagem tinha que terminar antes das aulas começarem, na primeira segunda-feira de março. No leme, o velho Veríssimo. Aquele do qual só conhecia o perfil que Jorge de Andrade fizera para a revista Realidade.


No alto mar, às vezes me aproximando da costa, fui surpreendido pelo amigo suado, ofegante, a cara em brasa. Surgia como um pirata assaltando minha viagem.

Enquanto eu fazia duma poltrona um navio sem limites, o amigo fazia da outra ao lado o seu porto seguro. Sob o braço molhado trazia Hermann Hesse. Nossos mapas de viagem se cruzaram.


Não lembro mais se ele já tinha lido Érico Veríssimo. Sem demora, troquei de bússola. Hermann Hesse assumia o comando, com Peter Camenzind ao meu leme.


O coração acelerado do amigo em busca da outra poltrona foi porque, passando pela Primeira Quadra, esteve na Livraria do Globo. Naquele tempo a livraria era enorme, pé-direito alto. Havia mezanino de onde os funcionários enviavam aos clientes mercadorias numa pequena caixa de madeira amarrada a um cordão. Além das estantes atrás dos balcões, os livros ficavam disponíveis pela circulação da loja. As livrarias ainda trabalhavam com estoques. Seu Milton, para mim, era o gerente. Belvení avisava da chegada dos livros. Admirava a solenidade de seu Bráulio desenhando a letra no bloco, para fazer a nota da compra.


Não sei quanto tempo levou a visita do meu amigo à livraria. Chegou lá em casa na corrida para escapar do sol ou, também, de vergonha.


Parecia-me um gigante, como os das minhas primeiras leituras, atravessando, em diagonal, a Saldanha Marinho com um pé na esquina do Café Turfista e o outro na esquina do Centro Cultural.

- Na estante ao lado da porta vi o Hesse. Peguei e saí.
- Correndo?
- Comecei a correr depois. Pensei no Demian, mas era difícil.
- Para carregar os dois...?

Peter Camenzind não era meu, mas não deixaria de lê-lo também naquele verão.
- Eu fico com o livro para ler depois, se não atravesso a praça. Nunca mais poderás passar pela Primeira Quadra.
Tinha que parar no tempo, ler o Hesse e depois continuar no vento.

Ancorei a poltrona na sala. Li a prosa poética de Hermann Hesse, embaixo do caramanchão de maracujá. Deitado na rede, sentindo o cheiro do musgo que desde sempre cobriu aquele muro rente. Viajava: tantos continentes, arquipélagos e retratos.


Dias mais tarde, meu amigo voltou para buscar o seu Peter Camenzind, jurando que o havia comprado. Voltei ao vento, sem perder tempo. Outra vez na poltrona. O tempo e o vento não cabiam na rede.


Logo depois, a prima, que era professora, autorizou minhas compras na sua conta corrente da Globo. Estabelecemos um trato, que possivelmente eu nem sempre tenha cumprido: para comprar novo livro, só depois do outro pago a perder de vista.


(A Livraria do Globo centenária, em Santa Maria, fechou definitivamente suas portas, em maio de 2009 - agora, na 2ª quadra da Dr. Bozano . No mesmo local, em junho, abriu uma filial da livraria da Mente.)